Eu não tenho certeza se vou conseguir especificar nessa resenha tudo o que senti e entendi lendo esse livro, mas juro que vou tentar. Essa é minha primeira experiência com a Ursula, e mesmo indo preparada, pois me falaram que seria difícil, eu confesso que não imaginava o tanto. Eu demorei dois meses para ler, marquei o livro todo, e gastei quase três bloquinhos de post-it, pois acabou a cor e eu fui alternando, rs. Não conseguia ler em qualquer horário, porque precisava de toda a minha atenção, e, mesmo assim, ainda acho que deixei passar detalhes e que deveria ler mais uma vez.
Aqui teremos dois planetas gêmeos, Urras e Anarres, sendo Anarres, na verdade, a Lua de Urras. Em Urras as pessoas vivem no sistema capitalista, bem parecido com o nosso. Em Anarres, a lua de Urras, temos o anarquismo. Em algum momento, todos os humanos moraram em Urras, até que rolou uma rebelião anarquista e eles, literalmente, se mudaram para a Lua. Anarres então passou a ser um planeta autossuficiente e começou a criar a sua sociedade baseado no anarquismo e comunismo, e se afastou totalmente dos outros planetas, principalmente Urras.
Nós vamos acompanhar Shevek, um físico que mora em Anarres. A sociedade de Anarres é totalmente baseada na ajuda mútua e na não propriedade. Eles não entendem o conceito de dinheiro, venda, nem os conceitos de hierarquia. Todo mundo está no mesmo nível e se ajuda da mesma forma. O trabalho não é nada parecido com o nosso, eles estão sempre revezando entre os postos, e todo mundo trabalha um pouco em cada coisa. É utópico, mas construído de forma tão redonda pela autora, que fica totalmente possível. Ursula pensa em absolutamente tudo. E isso fica claro quando Shevek vai para Urras.
Shevek tem uma fórmula que pode mudar as formas de comunicação entres os planetas, e acredita que o tempo não acontece de forma contínua e sim de forma simultânea. Tudo acontece ao mesmo tempo, e ele quer compartilhar essa forma de comunicação e essas descobertas com o mundo. Porém, Anarres se formou quando as pessoas começaram a acreditar que a forma de vida capitalista não fazia sentido, e por isso não querem nenhum contato com outros planetas depois da sua revolução, e acham que Shevek é um traidor. Fiel ao que acredita e sedento por compartilhar seu conhecimento e conversar com pessoas que entenderiam sua pesquisa, ele vai até Urras, e é impressionante e extremamente inteligente, os questionamentos que ele tem e a forma como Úrsula pensa em tudo.
Ele fica chocado com a pobreza e a desigualdade, pois, no planeta dele, eles acreditam que se for para passar fome, todos vão passar juntos. Eles comem em refeitórios, não existe sua própria comida, tudo é feito para todos e dividido. Quando tem filhos, eles não ficam com os pais, pois isso também é um conceito de proprietário, como eles falam, e não é incentivado. As crianças vão para dormitórios em uma determinada idade, e ficam com os pais algumas horas do dia, se os pais quiserem e estiverem nas proximidades. Como o trabalho é revezado, a qualquer momento você pode ser transferido para um lugar distante e não ver a criança durante anos. A mesma coisa acontece com sua parceira, que você pode ficar sem ver, se não forem alocados na mesma região.
Em Urras isso obviamente não existe, mas tudo está indo de forma descontrolada para o abismo. Muito dinheiro, muita desigualdade, o consumo desenfreado do planeta, a total falta de empatia e ajuda das pessoas. Em Anarres não existem animais, assim como não existem muitas outras coisas, e eles são todos veganos. Comer carne em Urras é uma coisa estranha e nada agradável para Shevek. E isso é apenas uma das questões que ele levanta. Existe a real necessidade dessa forma de consumo? Como isso afeta o planeta?
Outra coisa discrepante é a forma como as mulheres são retratadas. Em Urras ela são extremamente sexualizadas e não fazem nenhuma atividade. Em Anarres, são iguais os homens, com direitos iguais, participantes de pesquisas e da comunidade. Em Anarres também, a forma que a sexualidade é tratada é de forma muito mais simples e clara, e em Urras, a necessidade de posse torna tudo muito mais complicado. Tudo é isso é um choque de culturas para Shevek.
Ursula traz, de forma intensa e detalhistas, questões que servem ao nosso tempo com perfeição. Ela nos fala sobre o consumo desenfreado, situação social, liberdade, propriedade. A crítica social permeia o livro todo, é de crítica social que ele é feito. Em duas linhas temporais, ela nos conta em uma delas, como funciona Anarres e como Shekev, desde criança, cresceu para se tornar o físico questionador que iria para Urras no futuro. E na outra, o que essa viagem causou ao físico e os questionamentos que ele vai levar para a vida toda.
É um dos livros mais difíceis que já li, e mesmo que a autora tenha o dom de escrever de forma mais simples possível, ainda sim fiquei um pouco perturbada. Não só pelas coisas que pensei e anotei. Algumas explicações físicas aqui foram demais para mim, e algumas filosofias me deixaram com a cabeça explodindo. Eu acho o capitalismo, sim, terrível, mas o comunismo estaria isento de erros? Tem uma passagem que Anarres enfrenta uma seca, e a comida chega a níveis alarmantes, a ponto de, pela primeira vez, eles cogitarem roubar de outras pessoas.
Eles vivem a pouco mais de cem anos nessa sociedade, e ainda existe muita coisa que pode destruir a estabilidade que eles têm. Se nenhuma forma de hierarquia existe, eles vivem a liberdade em sua plenitude. Mas será que são livres realmente? Vivendo em sociedade, é possível a liberdade sem nenhum tipo de ordem hierárquica? Todos realmente vivem nesse sistema ou estão tão condicionados a ele que não percebem a hierarquia subliminar que está em todos os casos? E você, como indivíduo, pode ter suas próprias coisas, ou isso é errado e vai contra o que somos desde o princípio: uma sociedade?
Eu sei que já escrevi mais do que qualquer outra resenha que já fiz aqui, mas ainda não falei nem o começo do que Os despossuídos causou em mim. Se você gosta de ficção cientifica, e questionamentos enormes sobre seu papel na sociedade, liberdade e consumo, esse é o seu livro. Se gosta de ficar um pouco louco, e debater assuntos que permeiam nossa sociedade, sem dúvidas, é o seu livro. Se puder ler com amigos, recomendo ainda mais, esse é um livro para ser discutido. E não leia com pressa, nem fique nervoso se sentir que as páginas não terminam e você não anda na narrativa. É para ser lento, e para ser lido com a atenção plena e mente aberta.
Titulo: Os despossuídos (exemplar cedido pela editora)
Autora: Ursula K. Le Guin
Editora: Aleph
Páginas: 384
Ano: 2019