Neste livro, a história usa do momento atual de pandemia fazendo analogias com textos bíblicos e mostra ainda um cenário que segue rumo ao caos. Há uma grave epidemia que dizimou todos os animais e agora assola boa parte dos humanos, muitas precauções - como o isolamento - estão presentes no enredo.
Quando Edgar Wilson, Tomás e Bronco Gil se juntam no intuito de saber o que realmente está acontecendo, se deparam com algo além do alcance dos três, percebem que o apocalipse previsto na Bíblia faz-se presente, seja pela vontade de Deus ou pelo ser humano que fará com que a profecia se cumpra sem necessidade da força divina. O homem, quando se trata de seus interesses sócio-políticos e econômicos, não mede esforços para que tudo aconteça conforme a vontade dele mesmo, com ou sem a ajuda do Altíssimo.
Focando no arrebatamento descrito no livro do Apocalipse, a epidemia que assola a região traz à tona questões de cunho moral e religioso e a analogia entre os acontecimentos e as previsões bíblicas fazem com que os personagens se questionem intimamente e entre si sobre tudo que veem, trazendo suas dúvidas para o leitor.
"... o horror que os atinge, atinge a todos. Que o tempo de matar e de morrer se alinha ao tempo de deixar a si mesmo. Toda esperança, toda palavra escrita, tudo o que já foi proferido... o que importa é manter-se no fluxo contínuo da vida até que ela se extinga. Até que todos nós venhamos a morrer."
Fui pega de surpresa ao saber que essa história se trata do volume 2 de uma trilogia iniciada em "Enterre seus Mortos." Agora só me resta esperar que Ana Paula não demore em lançar o fechamento porque a curiosidade foi a mil.
Assim sendo, personagens como o protagonista Edgar Wilson e o ex-padre Tomás já são conhecidos de quem leu o volume 1, a minha surpresa ficou por conta do crossover que a autora fez trazendo Bronco Gil, um personagem magnânimo de "Assim na Terra como Embaixo da Terra" para dentro do mundo de Edgar e achei que o match foi perfeito (isso não é spoiler, apenas uma menção). Por isso aconselho a leitura dos livros citados antes de "De Cada Quinhentos uma Alma," a leitura será muito mais prazerosa. Mas, mesmo sem ler o volume 1, as histórias de Ana Paula têm autonomia própria e não há necessidade de ler na ordem de lançamento para compreensão deste.
"O caos é silencioso. Move-se insuspeito. Penetra pelas brechas ordinárias que ignoramos. Instala-se, e, assim como um organismo vivo, seu instinto é expandir-se, sulcando camada após camada até enraizar-se. Quando nos damos conta, ele é quem já dita as ordens e os próximos movimentos. Nem mortos, nem impotentes; estamos dominados."
Sua escrita é única, objetiva e vai direto ao ponto descartando rodeios descritivos, impressiona ao conseguir nos situar acompanhando cada mudança de cenário sem aprofundamentos visuais, o que faz do ponto de vista do personagem de uma importância ímpar, já que é através dele que veremos todo o ambiente e os acontecimentos.
A autora tem como tema central em seus livros o bem, o mal e os mais diversos conflitos que esses dois proporcionam, sempre permeados pela morte, que acaba por findar todos os questionamentos existenciais. O tanto de reflexão sobre nossas atitudes diante a diversas situações que o livro aborda é inquestionável e para o leitor menos atento, muita coisa pode passar despercebida. Eu mesma quero reler os livros da autora sempre que possível pois acredito que a cada leitura uma nova descoberta será feita.
Como todo livro de Ana Paula, a experiência é incomparável e muitas questões ficam em aberto e dão margem ao leitor para tirar sua própria conclusão e ter uma experiência particular com o que foi apresentado.
Super recomendo para aqueles que gostam de explorar questões filosóficas, expandir universos pouco explorados como, por exemplo, a morte e gosta de lacunas que possa preencher.
"São esses homens de sangue e de guerra, que adentram as profundezas das trevas sobre a terra, que matam para fazer viver, que vivem para morrer todos os dias, como os santos beatificados em espírito, como os santos mortificados em carne."
Título: De cada quinhentos uma alma (exemplar cedido pela editora)
Autora: Ana Paula Maia
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 112
Ano: 2021
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