Essa vai ser uma resenha diferente, de um livro bem diferente com uma personagem mais diferente ainda. Quantas obras você já leu cujo protagonista é um idoso? É algo tão óbvio, mas ao mesmo tempo foge do que estamos acostumados. Aliás, devo falar por mim, baseado em tantos livros que já li, poucos foram contados por uma senhora (ou nenhum, talvez).

E aqui estamos diante da minha xará, Natalia. Uma mulher bem velhinha, passa os seus dias em seu apartamento à espera de telefonemas da filha que reside em outro país. Viúva. Última sobrevivente do seu ciclo de amigos. Ela só tem a si, pois é assim que se sente em grande parte do seu tempo. Apenas quando o telefone toca que as coisas melhoram um pouco.

“Ainda é cedo para dizer por que ninguém mais telefona para ela, mas aparentemente todo mundo que tinha seu número e que gostava de conversar já morreu. Um a um eles morreram, cada um a seu tempo.”

Vicente, companheiro dela, era professor de geografia e foi perseguido pela ditadura. Sarah, sua melhor amiga, era uma mulher de temperamento impossível e dona de uma loja de biscoitos. Jorge, um morador de rua, lia cartas prevendo o futuro e recebia doses de Campari em troca. E a sua filha, bem, ela continua em outro país, mas nunca esquece um dia sequer de ligar para a sua querida mãe.

O contexto da história é bem triste. Não é uma leitura rápida, pois não há diálogos. É um livro de “apenas” memórias – e digo “apenas” porque não é somente algo raso e insosso. Às vezes é bem pesado ler algumas partes, em outras é até possível sorrir pelos detalhes. Porém, em grande parte a gente fica imerso e refletindo quem somos e para onde vamos.

Não é uma leitura que provoque alegrias ou que deixe o leitor satisfeito. Pelo contrário, como você se imagina daqui a uns 30 anos? E se você se deparasse sozinho, sem uma pessoa ao seu lado? Acordar sem ninguém ao seu lado e um vazio dentro de si. É uma narrativa reflexiva e pesada.

É triste ler e imaginar que isso é o destino de todos nós. Acredito que o maior medo do ser humano seja a solidão. É difícil fugir disso quando a idade chega. Quando as pessoas que você ama precisam partir, ou simplesmente partem sem precisar – como temos visto com a pandemia.

Ainda que a história tenha me prendido, a repetição dos vocativos e outras coisas acabam deixando o ritmo arrastado da metade para o final. Embora do início até a metade eu tenha devorado, o restante foi mais compassado.

“Ela adia a abertura do jornal e molha o pão no café com leite bem quente. Morde a ponta molhada do pão onde a manteiga está derretida e logo sente aquilo que mais desejava nesta manhã, a gordura salgada tomando a superfície da língua. A gordura é generosa e a velha se arrepia inteira, é sempre assim, uma gordura quente e salgada faz uma velha como essa arrepiar todos os pelos de manhã cedo. Ela sente o grande prazer do pão molhado entre os dentes e de repente fica um pouco encabulada. Talvez devesse pedir autorização por escrito a alguém para, além de seguir viva a essa altura, ainda por cima sentir prazer na língua, talvez esse fosse o procedimento correto, ver se ainda é permitido aos humanos revirar os olhos de delírio. Mas agora é tarde, ela já mordeu o pão e já sentiu o prazer engordurado invadindo o corpo, de alguns gozos não se pode voltar atrás.”

Título: Humanos exemplares (edição cedida pela editora)
Autora: Juliana Leite
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 248
Ano: 2022
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8 comentários:

  1. Bem, eu sou uma pessoa que precisa da solidão. Eu me tornei uma velhinha chata pra Cacilda rs e por viver em uma casa onde tem uma criança de 5 anos que fala mais que pobre em dia de chuva, eu valorizo demais 5 minutos de silêncio, trancada no banheiro de casa.
    Admito que não sei como seria viver sozinha, ser sozinha, sabendo que ninguém mais cantaria o dia todo ou ao menos, me provocasse com um "corre vó, tenta me pegar".
    Por isso, já adorei a história do livro, o relato do livro e sim, vai pra listinha de muito desejados com certeza.
    Beijo

    Angela Cunha Gabriel/Rubro Rosa/O Vazio na flor

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  2. O assunto é um dos que mais gosto de encontrar nos livros. E parece ser um livro bem melancolico. Sim, se sentir sozinho é bem assustador e como disse, acho que todos se nao a maioria no fim, possa sentir isso.
    Capa lindissima, e acho que vou achar lindo essa historia. Muito mais curiosa em ler agora.

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  3. Já li alguns livros protagonizados por senhoras sim. Claro que em comparação a livros com protagonistas jovens o número é quase mínimo mas o importante é que vez por outra eles são publicados.
    Quanto a Humanos Exemplares, achei a história sensível, e bem interessante pela forma como foi escrita sem diálogos....só memórias

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  4. Naty!
    Sabe que se eu conseguir viver mais 30 anos, já será o suficiente, porque não sei se viverei tanto, imagina pensar o que estarei fazendo...
    Li uns poucos livros com protagonistas idosos e são tão edificantes.
    cheirinhos
    Rudy

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  5. Fiquei feliz por saber que o livro é protagonizado por uma personagem mais velha, e triste por saber que conta sobre a sua tristeza atual, mas é necessário abordar partes tristes até para abrir os olhos dos mais novos sobre como seus pais ou avós podem se sentir.

    Danielle Medeiros de Souza
    danibsb030501@yahoo.com.br

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  6. Oi, Naty!
    Acho que li um livro onde o personagem principal tinha no máximo uns 50 e poucos anos, mas a maioria foram livros com os personagens abaixo da faixa etária de 50 anos... Confesso que não curto livros que não possuem diálogos, e prefiro quando a narrativa é leve em vez de pesada, por isso acredito que Humanos Exemplares não faz o meu estilo de leitura... Bjos!

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  7. Já até li alguns livros em que idosos são protagonistas, mas esse parece realmente diferente pelo tipo de abordagem, ao ter foco nas dificuldades e sentimentos no presente e não explorar apenas as lembranças. Imagino que não seja mesmo fácil a leitura, até porquê o futuro de cada um de nós é uma incógnita, somos seres únicos, e por mais que estejamos cercados de pessoas, nada impede de ficarmos sozinhos amanhã.

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  8. Ola
    Livros com personagens idosos é bem raro mesmo.Deve ser bem reflexivo pois é como você resenhou que todos nós temhamos receio da solidão. E é um tema que bem real infelizmente Muitos idosos são esquecidos até mesmo pelos parentes mais próximos

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