Apesar da complexidade e da fragilidade acerca da temática da qual dispensa esse livro, é muito comum encontrarmos obras, literárias ou não, sobre o holocausto. Sendo assim, não é pecado dizer que o mercado encontra-se, de certo modo, saturado de materiais que envolvem o ambiente atroz pelo qual o mundo, principalmente grande parte da Europa, passou. Porém, o trabalho que a Editora Vestígio buscou traduzir e lançar no mercado brasileiro é muito mais do que um apanhado de artigos e/ou histórias reais romantizadas criadas a partir do intuito de fazer seus olhos lacrimejarem.
Antes de dar continuidade, gostaria de avisar que ao final serão inseridos quotes do livro e... alguns são bem pesados. Ou seja, eu não recomendaria a leitura por quem tem ou está com o emocional abalado.
Fruto de um trabalho de 25 anos, “O Holocausto: uma nova história” é um livro que narra os acontecimentos, como o primeiro capítulo sugere, desde a origem do ódio até o emocionante dia em que a Alemanha perde a guerra. Com um desenvolvimento que só duas décadas de trabalho podem trazer, Rees relata através de textos originais e entrevistas pessoais como nasceu o ódio pelos judeus (e consequentemente os ciganos entraram na dança), como a perseguição ganhou corpo de forma rápida e imparável e como Hitler foi capaz de influenciar líderes de diversos outros países, transformando quase toda a Europa em um cemitério judeu.
Conforme os capítulos passam (e junto com eles os anos da guerra), nós vamos nos dando conta de que a história que conhecemos é muito mais que meramente superficial. Aqui, Rees nos apresenta a personagens que viveram, presenciaram e sobreviveram à guerra tanto do lado nazista quanto do lado dos judeus. Assim, através desses relatos o autor nos apresenta um apanhado pleno de emoções reais e nos faz conhecer, como se pegasse em nossas mãos e nos pusesse lá dentro, a Alemanha, Polônia e vários outros países, e nos transporta diretamente para os campos de concentração e extermínio.
Com isso, ficamos sabendo que Auschwitz faz jus à fama que tem, mas também temos conhecimento de que muitos outros campos de extermínio foram diversas vezes piores que o supracitado, mas que não aparecem nos livros de História. Ainda rondando a temática do que não sabemos, Rees dá à luz um complexo de informações que explicitam as variadas formas que os nazistas buscavam para eliminar os judeus. De situações estarrecedoras a aquelas que seriam cômicas não fosse o contexto, este livro é um verdadeiro passeio pelos métodos e propostas para eliminar os milhares de judeus que chegavam aos campos de concentração. Arrisco-me a dizer que não há um único capítulo onde não haja menção sobre meios que os nazistas inventavam para disseminação do ódio e extermínio dos judeus.
Com mapas detalhados que nos mostram os números absurdos de seres humanos que foram levados de suas casas e obrigados a viver em situação extremamente degradantes; e fotografias (as quais eu só não cuspi para não estragar o livro) que mostram todos os personagens de uma das eras mais escuras do mundo, este livro é o que se pode dizer que é completo. Muito mais do que mostrar (o) que houve (n)o holocausto, essa “nova história” mostra todo o descaso de um continente para com aqueles que precisavam de ajuda. Passando pela opinião da Igreja Católica e as consequências de ficar contra Hitler nessa guerra.
Devido aos capítulos longos e muito detalhados, sugere-se que o leitor faça uma leitura pausada, um capítulo por vez, de modo que ele possa digerir e compreender as passagens do capítulo em questão. Ao fim do livro temos uma vasta lista de referências e endereços que podemos visitar para obter muito mais informações que temos aqui; mas que, além de tudo, corroboram com a imagem de “completo” que temos do livro e com a complexidade da busca para completá-lo.
Sobre a edição: não posso dizer outra coisa senão perfeita. O livro é em capa dura, preta com texto preto brilhante (acho que condizente com o momento), mais uma segunda capa com detalhes em branco. Como já citado, além de um mapa detalhado, o livro passa por três sessões de fotografias que mostram os personagens de tamanha atrocidade.
Quotes
“[...] O livro não era um projeto para o Holocausto – Hitler não traçou um plano para exterminar os judeus –, mas expõe claramente a natureza de seu antissemitismo. Hitler explicou, com mais detalhe do que em qualquer manifestação anterior, exatamente o porquê de odiar os judeus. Era um ódio que hoje pode ser lido como fruto de uma mente tão atolada no preconceito que beirava a demência”, p.46.
“Enquanto judeus morriam por falta de comida no gueto de Varsóvia, em outra parte o Estado nazista discutia planos de levar milhões de pessoas à morte após a invasão da União Soviética [...] no dia 23 de maio, o mesmo órgão produziu outro documento intitulado “Orientações Político-Econômicas para a Organização Econômica do Leste”, segundo o qual 30 milhões de pessoas poderiam morrer de fome na União Soviética em decorrência do sequestro de sua comida pelo exército alemão”, p.239.
“[...] De modo hesitante, quase com medo, a pessoa passa a mão pelo corpo inquieto, depara com ossos, costelas, percorre com a mão as pernas e se descobre, constata de repente que até bem pouco tempo era mais gorda, tinha mais carne – e fica impressionada com a rapidez com o que corpo se deteriora [...] Uma palavra, uma ideia, um símbolo confronta todo mundo: pão! Por um pedaço de pão a pessoa vira um hipócrita, um fanático, um desgraçado. Dê-me pão e você será meu amigo”, (Oskar Rosenfeld) p.282.
“[...] profetizei ao judaísmo que, na eventualidade de a guerra se mostrar inevitável, os judeus iriam desaparecer da Europa. Essa raça de criminosos tinha em sua consciência os dois milhões de mortos da Primeira Guerra Mundial, e agora centenas de milhares mais [...] A propósito, não chega a ser uma má ideia os rumores públicos que nos atribuem um plano de exterminar os judeus”, (Hitler) p.285.
“[...] ele viu valas com ‘milhares de cadáveres’ dentro, e conheceu em primeira mão os problemas práticos de gerenciar um campo de extermínio. Contaram-lhe que ‘uma das valas havia transbordado. Haviam colocado cadáveres demais nela e a putrefação progrediu muito rápido, de modo que o líquido no fundo empurrou os corpos para cima, até saírem, e os cadáveres relaram pela encosta’”, p.319.
“O maior desses sádicos era Otto Moll, o membro da SS que supervisionava a operação dos crematórios. Dario Gabbai lembra como esse homem gostava de matar garotas nuas atirando nelas ‘nos seios’. Em 1944, quando a chegada de um número enorme de judeus húngaros obrigou a incinerar os corpos a céu aberto, em imensas valas – já que os crematórios não conseguiam dar conta do volume –, Moll uma vez atirou crianças diretamente às chamas para incinerá-las vivas”, p.386.
“Logo depois que chegou, ela foi informada por outros internos que ‘há câmaras de gás aqui’, mas simplesmente não parecia possível que existissem tais lugares. ‘Ninguém acreditava’, diz Ida. ‘Nenhum de nós acreditou. Não dava para acreditar. Dizíamos que estavam brincando ou então que haviam enlouquecido’. Só depois de sentir odores insalubres vindo dos crematórios de Birkenau é que ela ‘finalmente’ aceitou que ‘talvez eles estivessem certos a respeito do cheiro, talvez estivessem de fato queimando gente’”, p.431.
“Israel foi ficando cada vez mais ansioso. Não só nunca era escolhido como estava ficando cada vez mais fraco. ‘Todo dia havia racionamento de comida – simplesmente não era suficiente, era uma dieta de inanição. E o sentimento mais arrasador além do medo da morte é a sensação da fome. A sensação da fome é uma sensação tão esmagadora que encobre qualquer outra sensação, quaisquer outros sentimento humanos [...] [você fica] como um cão procurando comida’”, p.450.
Título: O holocausto: uma nova história (exemplar cedido pela editora)
Autor: Laurence Rees
Editora: Vestígio
Páginas: 600
Ano: 2018